O golpe que destituiu Dilma Rousseff, em abril de 2016, implementou uma radical ofensiva contra os direitos e a soberania nacional. As alterações da legislação trabalhista, com a nova lei das terceirizações e a contrarreforma aprovada recentemente, a reforma da previdência, a alteração do marco regulatório da exploração do petróleo e a Emenda Constitucional que congela os investimentos públicos por vinte anos representam o fim do ciclo inaugurado pela Constituição de 1988. Mas, para concluir a metamorfose do Estado brasileiro, não basta restringir radicalmente sua capacidade de assegurar direitos: é preciso sufocar a própria democracia.

A elite econômica brasileira, que se expressa politicamente nos partidos e entidades de classe que apoiaram o golpe parlamentar de abril, tem ojeriza à democracia. Não por acaso, essa elite sempre resolveu os impasses oriundos do processo de modernização capitalista rompendo a ordem estabelecida. Foi assim em 1889, 1930 e 1964, por exemplo. Com a crise econômica de 2008, a luta em torno do fundo público colocou novo impasse, resolvido pelo golpe que viabilizou o projeto de destruição dos avanços assegurados pela Constituição Federal de 1988. Mas esse projeto de ataque aos fundamentos da nova República só pode se completar pelo fim do sistema político tal como o conhecemos: de nada adiantaria viabilizar um programa tão radical se houvesse o risco de retomada do Estado por uma força progressista através das vias democráticas. É preciso, portanto, interditar a democracia em si mesma.

Para isso, muitas hipóteses estão em discussão. Desde a adoção do parlamentarismo – mantendo perpetuamente o sistema político refém de um Congresso Nacional corrupto – até uma reforma política que bloqueie o surgimento de novos atores de fora do establishment. A minirreforma eleitoral de Eduardo Cunha, promovida em 2015, já buscava atender esse objetivo. Ao impedir a participação de partidos como Rede e PSOL nos debates de televisão, Cunha e seus aliados tinham como objetivo impedir que esses partidos pudessem granjear simpatias junto à sociedade.

Agora, em meio a uma brutal crise política, com mais de 200 parlamentares investigados e um presidente denunciado pela Procuradoria Geral da República por corrupção e obstrução de justiça, os partidos conservadores buscam viabilizar uma reforma política que terá como consequência a concentração do sistema partidário em poucas legendas, a liquidação das minorias, o fim dos partidos ideológicos, o aumento do personalismo e a perpetuação do atual parlamento. Seria a “cereja do bolo” dos golpistas.

Duas medidas tramitam na Câmara dos Deputados. A Proposta de Emenda Constitucional 77, de relatoria do deputado Vicente Cândido (PT/SP) ainda não foi votada nem na Câmara nem no Senado. É, portanto, a medida que está mais atrasada. Ela traz uma série de alteração no sistema eleitoral, mas as principais são a criação de um Fundo Eleitoral e a alteração do sistema proporcional para o sistema distrital misto.

O Fundo Eleitoral asseguraria um valor correspondente a 0,5% da receita corrente líquida para o financiamento das eleições, cerca de R$ 3,6 bilhões. A ideia vai ao encontro da proposta de financiamento pública das campanhas, existente na maioria das democracias ocidentais e defendido pela esquerda. No entanto, mantém padrões de financiamento inaceitáveis para um país como o Brasil. Esses valores são maiores, por exemplo, que aquele destinado em 2016 ao Ministério do Esporte ou da Cultura. É claro que a democracia tem um custo que deve ser financiado pela sociedade. Só o protofascismo do MBL pode pensar o contrário. No entanto, é necessário reduzir drasticamente os valores das campanhas eleitorais e isso não será feito mantendo, no financiamento público, valores aproximados aos que são gastos hoje pelos grandes partidos.

Outro tema proposto na PEC 77 é a adoção do Sistema Distrital Misto. A proposta enfraquece os partidos e aumenta o personalismo, já que metade das vagas ao legislativo seria eleita pelo sistema majoritário. O relator tem afirmado que o distrital misto (onde as vagas seriam preenchidas 50% pelo sistema atual – proporcional – e 50% na votação majoritária em distritos definidos pela Justiça Eleitoral) é um “mal menor” diante da proposta do “distritão” (proposta que transforma os estados em distritos e a votação proporcional em majoritária). Na madrugada da última quarta-feira, na votação do relatório da PEC 77, porém, os velhos partidos da direita – PMDB, PP, DEM, PSD, dentre outros – incluíram no relatório que será votado no plenário da Câmara dos Deputados o famigerado sistema eleitoral que liquida os partidos através da transformação da votação proporcional em votação majoritária. Nele se elegem os mais votados, sem contar votos partidários ou coligações. É o império do individualismo. Um sistema adotado em grandes democracias, como Afeganistão e Ilhas Maurício…

Outra proposição que propõe alterações no sistema político e eleitoral é a PEC 282, cuja relatora é a deputada Shéridan Oliveira (PSDB/RR). Essa é a PEC cuja tramitação está mais adiantada, já que foi votada em dois turnos no Senado Federal. Ela é originalmente de autoria dos senadores Aécio Neves e Ricardo Ferraço (ambos do PSDB) e suas duas principais propostas são a introdução da cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais (e criação das Federações Partidárias). Ela prevê ainda, graças a uma emenda do PCdoB, a distribuição das sobras, medida extremamente positiva, já que corrige distorções no preenchimento das vagas ao legislativo no sistema proporcional atual.

O fim das coligações é uma medida positiva, já que diminui o fisiologismo. Seria uma “cláusula de barreira ideológica”, isto é, partidos representativos e com forte identidade sobreviveriam de forma autônoma, sem precisar depender dos votos das grandes legendas. Da mesma forma, a proposta de Federação é benéfica, já que permite que os partidos com afinidade ideológica façam composições sem finalidade exclusivamente eleitoral. A Cláusula de Barreira proposta pelos senadores tucanos, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2005, propunha inicialmente um percentual mínimo 2% dos votos para deputado federal em, pelo menos, 14 estados. Sem alcançar esse índice o partido perderia fundo partidário, tempo de TV e Liderança na Câmara e no Senado. No médio prazo a medida geraria a asfixia de partidos ideológicos como PSOL, Rede e PCdoB. Diante desse cenário, foi negociada uma mediação que prevê uma cláusula de 1,5% em 9 estados, aumentando 0,5% a cada eleição nacional até 2030, quando a cláusula alcançaria 3%. Vale a pena lembrar que as medidas regressivas introduzidas por Cunha na minirreforma eleitoral de 2015 ainda estão em vigor, como a restrição à participação em debates de partidos com menos de 10 deputados federais.

Essas alterações no sistema eleitoral, reunidas, representam um enorme retrocesso. Os escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, o fim do financiamento empresarial de campanhas e o aumento do controle pela sociedade, acederam uma luz amarela para os velhos partidos da ordem. É preciso alterar o sistema eleitoral, destruindo a democracia, para assegurar o que um deputado petista chamou, ironicamente, de “seguro reeleição”. Para isso, piorar ainda mais nosso sistema eleitoral é uma necessidade.