Pode ser inconveniente para as esquerdas que Guilherme Boulos, coordenador do MTST, ceda à pressão de diferentes setores sociais e aceite o convite do PSOL para ser candidato à Presidência da República nas próximas eleições? Esse é o tema de artigo divulgado há poucos dias pelo professor Aldo Fornazieri, um dos mais respeitados intelectuais da esquerda brasileira na atualidade. Além da qualidade dos argumentos, o ensaio do professor da FESP coloca a questão em termos transparentes e honestos, fugindo das simplificações que envolvem o tema da “unidade das esquerdas”. Por essas e outras razões, é válido dialogar com suas preocupações e apontar os limites de sua análise, propondo uma conclusão oposta à que ele sugere.

Segundo Fornazieri, o problema da candidatura de Boulos reside em dois aspectos principais. O primeiro, diz respeito ao tempo. Para ele, a liderança de Boulos “ainda está em fase de construção e não alcançou aquela dimensão nacional e popular do grande líder”. Ele destaca o líder do MTST como parte das poucas promessas do campo progressista, entre as quais também inclui Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT). Para ele, enquanto Lula tiver fôlego político e eleitoral, “esses líderes devem ser preservados e devem preservar-se, construindo e fortalecendo com sabedoria as suas trajetórias e as suas lideranças”.

Sem dúvida é um argumento honesto. A possibilidade de “queimar a largada” e expor negativamente uma liderança popular como Boulos é uma preocupação de todos e todas que apoiam a ideia da sua candidatura. Não por outra razão os debates seguem em curso no MTST, no PSOL e junto de outros movimentos sociais, artistas e intelectuais que simpatizam com sua candidatura. Definitivamente, não é uma decisão fácil. Passar da luta social à luta eleitoral é sempre um movimento complexo, sobretudo no contexto de indefinições da atual conjuntura.

O segundo aspecto levantado por Fornazieri diz respeito à regressão do enraizamento das esquerdas e seus valores no seio do povo. Segundo Fornazieri, “sendo o Brasil um país brutalmente desigual, com elevado índice de pobreza e com vastas áreas de carecimentos, os partidos, candidatos e programas orientados para a solução desses problemas tendem a ter um bom desempenho eleitoral. Mas como os partidos e sindicatos são burocráticos e superestruturais, com frágil inserção e organização de base, a sociedade civil se mostra débil na resistência aos golpes”.

A solução para isso seria um investimento no trabalho de base, onde o MTST cumpriria um papel fundamental no novo ciclo histórico. Para o professor, “deslocar, neste momento, a sua principal liderança para o teatro institucional poderá enfraquecer esta perspectiva promissora de criação de poderosas organizações sociais, como instrumentos de mudança de correlação de força, de construção de uma nova hegemonia e de mudança social e política”. Embora considere uma visão um tanto idealista dos movimentos sociais, que subestima o papel dos sindicatos e partidos políticos, não posso deixar de considerar uma preocupação justa. Afinal, ao se institucionalizar, parte das esquerdas perdeu contato com o que havia de organização popular ou, pior, estimulou esse contato tão somente na perspectiva da cooptação e do aparelhamento.

Considero ambos os argumentos – exposição precoce de uma nova liderança e necessidade de ampliação do trabalho de base – bastante razoáveis para justificar uma posição contrária a uma eventual candidatura de Boulos. Mas os considero insuficientes. Isso porque, como assinala Fornazieri ao longo de seu ensaio, não estamos falando de 2018, mas do futuro. A questão é que o futuro passa por 2018 e o que as esquerdas farão dele. Seu raciocínio, como fica demonstrado ao final do ensaio, conclui que o melhor seria uma frente democrática em torno de Lula. Na prática, significaria definir antecipadamente que o próximo ciclo político das esquerdas, ainda que sem Lula, seguiria marcado pela hegemonia do lulismo.

Ninguém diverge (nem o professor Fornazieri) que estamos vivendo uma transição para um ciclo “pós-Lula” na esquerda brasileira. No entanto, o caráter desse novo ciclo pode expressar a afirmação da hegemonia lulista – alianças com frações da burguesia, manutenção do modelo econômico primário-exportador, reformismo de baixa intensidade, mínima capacidade de promover enfrentamentos estratégicos, como a democratização das comunicações ou do judiciário – ou sua superação, apontando um novo programa e uma nova estratégia política. Isso é o que a análise de Fornazieri ignora: há uma disputa de projetos no interior das esquerdas.

Ao apontar Ciro Gomes, Fernando Haddad e Boulos como potenciais lideranças de um novo ciclo nas esquerdas, fica patente que as diferenças estratégicas e programáticas que os separam estão em segundo plano para Fornazieri. É claro que esse novo ciclo não pode ser marcado pelo antipetismo ou pela negação dos avanços conquistados nos governos liderados por Lula e Dilma. Ao se somarem à luta contra o impeachment de Dilma, partidos e setores sociais críticos ao “pacto de classes” do lulismo, como o PSOL, demonstraram generosidade e responsabilidade histórica. Mas isso não pode ser confundido com unidade estratégica em torno de um programa.

É aqui que reside o tema mais importante por trás da possibilidade da candidatura de Boulos: ele é hoje o único disposto a representar um programa e uma estratégia que apontem como horizonte algo superior ao lulismo, sem deixar de considerar os importantes avanços que o ciclo reformista proporcionou ao povo brasileiro. As demais candidaturas hoje colocadas no campo das esquerdas (Ciro, Manuela, Lula ou outro nome do PT) não querem – e talvez, não possam – ir além de uma proposta neodesenvolvimentista. Não é de espantar que hoje o único partido disposto a travar o debate aberto em torno de uma nova estratégia política é o PSOL, exatamente por não ter feito parte da coalizão em torno da qual o lulismo se desenvolveu como projeto de governo. É pouco para o tamanho do desafio? Sem dúvida. Mas em nome do argumento da “unidade das esquerdas” o que tem se buscado, muitas vezes, é interditar o surgimento de alternativas e, assim, perpetuar as mesmas práticas e o mesmo programa que mostraram seus limites com o impeachment de Dilma. Conheço as críticas do professor Aldo Fornazieri a essas práticas e sei que esse não é o seu caso.

Por fim, é justo se preocupar com o tempo dos processos, especialmente tendo em vista a preservação de jovens lideranças. Mas também é necessário aproveitar as oportunidades que a história oferece. Se estamos de acordo que 2018 marca o início de um novo ciclo para as esquerdas no Brasil, não peçam que assistamos ao jogo da arquibancada. Há uma nova geração de lutadores e lutadoras que anseiam por uma alternativa, pessoas que foram às ruas em 2016 contra o golpe mas não se veem representadas nos mesmos partidos e nas mesmas propostas que hegemonizaram a esquerda até aqui. Com paciência e responsabilidade, mas sem tibieza, devemos apostar na formação de um novo campo político, que supere as alianças e o programa do “ganha-ganha”. Esse campo precisa de uma candidatura no primeiro turno de 2018. A hora é da luta aberta contra a elite golpista que governa esse país. Sem concessões, sem acordos, sem tréguas. Um novo tempo para as esquerdas. E a cara desse novo tempo tem nome e sobrenome: Guilherme Boulos.