Eram 22h quando Marcelo Freixo, referência internacional na luta pelos direitos humanos contra a violência policial, me telefonou. “Mataram a Marielle! Mataram a Marielle!”, disse ele com a voz embargada, minutos antes de se dirigir ao local do crime. Fiquei atônito. Como assim “mataram a Marielle”? Ela não vinha sendo ameaçada, como confirmaram depois seus assessores e familiares. E suas denúncias contra a violência policial, embora gravíssimas, se resumiam a publicações nas redes sociais, como fazem outros ativistas dos direitos humanos no Rio de Janeiro, sem que tivessem resultado em investigações ou prisões. Então, por que Marielle?
Há muitas hipóteses circulando na imprensa. Nossa dor ainda não permitiu analisar racionalmente toda a situação. Todos nós que conhecemos Marielle estamos, de alguma forma, chocados com a barbaridade do crime. Mas ainda mais chocados com a ausência de elementos que pudessem explicar esse assassinato covarde. Impossível não lembrar das ameaças contra Freixo, quando presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, assessorado pela própria Marielle. Apesar das ameaças e riscos que ainda corre, ele segue entre nós. E ontem era um dos que choravam a morte de sua companheira de jornada, sem entender as motivações daquela atrocidade.
Está claro que se trata de um crime político, isto é, com a finalidade de provocar uma grande repercussão nos círculos do poder. Se Marielle, embora relatora da Comissão De Acompanhamento da Intervenção Militar Federal no Rio de Janeiro, não fosse alvo “preferencial” de milicianos ou PMs – como atesta a própria ausência de ameaças e, consequentemente, de aparato de segurança privada – por que mataram Marielle?
Ainda é muito cedo para concluir as motivações dos autores. Desmoralizar a intervenção militar? Disseminar o terror entre os ativistas dos direitos humanos? Evitar a ascensão de uma nova liderança de esquerda contra a violência policial nas comunidades do Rio? Esses fatores, isoladamente, não parecem explicar por que escolheram Marielle.
Um elemento, porém, parece inquestionável: o racismo e o machismo estão por trás do crime. Marielle não era a única ativista de direitos humanos do PSOL com mandato parlamentar. Nem tinha tomado recentemente medidas legais contra a banda podre da Polícia Militar do Rio. Mas era uma mulher negra, oriunda da favela da Maré, que ousou ocupar um espaço destinado historicamente a homens brancos ricos. E isso fazia dela, na cabeça doentia de seus algozes, um alvo “natural”, uma anomalia do sistema. Apesar de vereadora eleita com votação expressiva, seus assassinos – profissionais da morte, como demonstram as características do crime – certamente a viam como mais um daqueles corpos “descartáveis”. Mal sabiam que os tempos são outros e que o Brasil já não aceita a barbárie contra uma liderança da expressão de Marielle.
As demonstrações de solidariedade e indignação encheram o PSOL de esperança e deram alento a todos os que chorávamos a perda de Marielle. Milhares de pessoas em todo o Brasil se emocionaram e se indignaram com a banalidade do mal, que embora vitime lideranças populares, indígenas e sem-terra todos as semanas, nunca tinha chegado tão longe. Ao executar aquela mulher negra da Maré, no centro do Rio de Janeiro, mal sabiam que estavam despertando a indignação de todas as mulheres do país. Quantas companheiras me disseram, ontem, indignadas, “poderia ter sido eu”? Imagino o que sentiram nossas vereadoras, muitas delas ativistas dos direitos humanos, sabendo que ainda há quem veja mulheres negras – mesmo com mandato parlamentar – como alvos em potencial.
O crime ganhou repercussão internacional e não seria de espantar se as autoridades descobrissem com alguma rapidez os autores do assassinato. Afinal, é a credibilidade da própria intervenção militar de Temer que está em jogo. Mas é pouco provável que venham à tona todas as motivações dos criminosos. Nos relatórios da perícia ou dos investigadores não estará escrito: “morreu porque era mulher e negra”. Aliás, essa frase seria suficiente para explicar boa parte dos assassinatos promovidos pelas forças de “segurança” em todo o país contra civis inocentes. É claro que esse fator não é suficiente para explicar por que escolheram Marielle. Mas não há dúvida de que o racismo e a misoginia são cúmplices desse crime brutal.
A luta que se inicia – ou melhor, se amplia, ganhando as massas – não termina com a prisão dos assassinos de Marielle. Ela só terá fim quando chegarmos ao mundo que ela sonhou: um mundo em que mulheres, negros e negras, do morro ou do asfalto, tenham os mesmos direitos e vivam com dignidade. Transformemos nossa dor em indignação. E da indignação, força para transformar o Brasil.