O que se espera de um presidente da República durante a maior festa popular do Brasil? O ideal, dirá qualquer assessor de comunicação, é que o principal mandatário do país expresse seus votos de bom Carnaval aos brasileiros, quem sabe até recomendando, em tom paternal, cuidado com os excessos no consumo de álcool, especialmente ao dirigir. Melhor ainda seria se o presidente manifestasse algum apreço pela folia, elogiando a riqueza cultural do povo brasileiro e sua extraordinária capacidade criativa, incluindo aqueles que usam o humor para criticar seus governantes. Mas esperar isso de Bolsonaro seria pedir demais.

Ao invés de mostrar simpatia pela maior manifestação cultural do país, o presidente dos brasileiros preferiu alimentar – nas redes sociais e nos de atos de governo – todo tipo de ataques a adversários, incluindo professores e estudantes, sindicalistas, imprensa e artistas, chegando ao cúmulo de veicular em suas contas oficiais o vídeo de um bloco de Carnaval contendo cenas escatológicas, com o propósito de desacreditar as críticas que sofreu durante o feriado.

A semana pré-carnaval de Bolsonaro já tinha sido difícil. Em cerimônia de posse do diretor-geral da Hidrelétrica de Itaipu, o presidente fez elogios ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner, responsável por centenas de assassinatos e acusado de corrupção e pedofilia. O mal-estar com as declarações de Bolsonaro foi imenso e preparou o terreno para o que viria depois.

Em pleno Carnaval, no dia 1º de março, Bolsonaro editou a Medida Provisória 873, que altera as regras da contribuição sindical. Segundo a MP, a partir de agora a contribuição dos trabalhadores a seus sindicatos deverá ser feita exclusivamente por boleto bancário e não mais por débito em conta, como acontece na maioria das categorias. Os sindicatos, que já não contam com o imposto sindical, extinto pela reforma trabalhista aprovada no governo Temer, serão profundamente impactados pela medida.

Segundo analistas, a MP tem como objetivo criar uma “moeda de troca” com sindicatos para facilitar a tramitação da reforma da Previdência, prioridade do governo Bolsonaro. O uso de uma medida emergencial com essa finalidade não caiu bem nem entre aqueles sindicalistas dispostos a sentar à mesa com o governo. Numa “canetada” Bolsonaro perdeu os poucos canais de interlocução que possuiu junto a algumas centrais e dificultou ainda mais a aprovação de sua reforma.

Dois dias depois, em plena segunda-feira de Carnaval, o presidente anunciou numa rede social a criação da chamada Lava Jato da Educação. Segundo Bolsonaro, “o Brasil gasta mais em educação que a média dos países desenvolvidos”. Ele ainda criticou o aumento do investimento no setor, ao dizer que “em 2003 o MEC gastava cerca de R$ 30 bilhões em educação e em 2016, gastando quatro vezes mais, chegando a R$ 130 bilhões, ocupa as últimas posições do Programa de Avaliação de Alunos (PISA)”.

As distorções da afirmação do presidente são evidentes. Países mais desenvolvidos têm um sistema educacional consolidado, onde os recursos são concentrados no custeio, e não no investimento, como acontece no Brasil (por exemplo, na expansão da rede de atendimento). Além disso, a manifestação do presidente irritou a esmagadora maioria dos especialistas em financiamento da educação, que denunciam há anos o subfinanciamento da área. Não bastasse, uma segunda declaração alimentou os ataques de seus apoiadores aos professores, acusados de “doutrinadores” a serviço do “globalismo”. Retomando o discurso de campanha, Bolsonaro defendeu a necessidade de mudar as diretrizes educacionais para “impedir o avanço da fábrica de militantes políticos”. Um desastre.

Mas não bastava irritar sindicalistas, professores, estudantes e especialistas no financiamento educacional. Sem assuntos mais importantes para tratar, Bolsonaro resolveu retomar o tema da Lei Rouanet, usado à exaustão em sua campanha eleitoral. Atacando Daniela Mercury e Caetano Veloso, que em fevereiro lançaram a música “Querem proibir o Carnaval”, o presidente alimentou uma polêmica estéril, acusando a dupla de se “locupletar” (um dos verbos preferidos de Bolsonaro) de recursos da Lei Rouanet. A polêmica movimentou as redes sociais e incentivou uma resposta de Mercury, que detalhou os incentivos que já recebeu e explicou de forma didática como o Carnaval movimenta a economia brasileira.

Não satisfeito, Bolsonaro meteu-se numa polêmica nas redes entre a jornalista Mônica Waldvogel e o juiz carioca Marcelo Bretas, retuitando publicação do magistrado em suas redes sociais e respondendo diretamente à jornalista em outra publicação. Além disso, fez uma publicação atacando a Rádio BandNews de Belo Horizonte, que ironizava o uso recorrente do termo “viés socialista” pelo presidente da República. Bolsonaro afirmara, minutos antes, que a cultura brasileira havia sido “destruída após décadas de governos de viés socialista”.

Professores, sindicalistas, artistas, jornalistas, estudantes. A lista de atritos que o presidente da República havia provocado em quatro dias de Carnaval já era extensa quando o ex-capitão chegou ao seu ponto alto (ou baixo?): a publicação de um vídeo gravado durante um bloco de Carnaval onde um folião urina sobre o outro. Ao fazer a publicação, o presidente atinge a institucionalidade do cargo, se é que não rompe com o próprio decoro exigido para a função. A publicação foi uma resposta de Bolsonaro às críticas que centenas de blocos de Carnaval endereçaram a seu governo. Em repúdio, o presidente publicou o referido vídeo, um fato isolado no Carnaval, como que para mostrar “a verdade” sobre os blocos de rua.

O Carnaval de Bolsonaro, portanto, foi uma pequena amostra do que é seu governo: intolerante com a classe artística e com a imprensa livre; incapaz de lidar com as críticas, venham de onde vierem; obcecado pela alucinógena “teoria anti-globalista”, segundo a qual o Brasil teria vivido nas últimas décadas – governos do PSDB e PT – sob forte influência do marxismo cultural; inimigo do direito à livre organização sindical; autoritário e disposto a usar os instrumentos de um Executivo forte para dobrar, mesmo que à força, uma sociedade e um parlamento que resistem à sua proposta de reforma da previdência.

O Carnaval de Bolsonaro não foi só um festival de amargura, ressentimento e bizarrices. Foi, também, a expressão da escalada autoritária que ronda o Brasil e para a qual devemos estar permanentemente atentos. Pode até parecer engraçado. Mas é grave.