Em artigo publicado recentemente nesta coluna, afirmei que as eleições deste ano ocorrerão sob o signo de três fatores novos: a desilusão de uma parte do eleitorado bolsonarista com seu governo, os impactos da pandemia do novo coronavírus na vida das pessoas e o fim do monopólio de Bolsonaro sobre o debate público. Somados, esses fatores podem produzir resultados eleitorais até então impensáveis. Trato agora dos impactos do último tema listado sobre as eleições deste ano.

Durante todo o primeiro ano na Presidência da República, Bolsonaro utilizou uma tática eficiente para controlar a agenda pública e diluir os efeitos negativos de sua plataforma de ataques aos direitos sociais, submissão de nossa soberania nacional e ameaças à democracia. Essa tática foi copiada do presidente estadunidense, Donald Trump, e consistia em saturar o debate público com polêmicas, declarações acaloradas, medidas sem pé nem cabeça etc. Com isso, Bolsonaro produziu o que Eliane Brum classificou como sequestro do debate público.

É evidente que, num ambiente minimamente democrático, o presidente da República será sempre uma das principais vozes e influenciará, com seus atos e palavras, boa parte do que entra em debate na sociedade. Acontece que durante todo o ano de 2019 Bolsonaro e seus ministros monopolizaram a definição daquilo que entrava na agenda do Brasil e interditaram a possibilidade de uma disputa fora do terreno do bolsonarismo.

Enquanto a oposição privilegiava o debate sobre a reforma da previdência, o governo criava polêmicas aos borbotões, com declarações sobre as roupas que crianças deveriam usar (“meninos vestem azul; meninas vestem rosa”), a defesa do boicote a veículos de comunicação considerados oposicionistas pelo presidente, a aparência da primeira-dama francesa e até o golden shower. Como é de se esperar, a oposição e os meios de comunicação eram arrastados para a agenda bolsonarista.

Durante o ano de 2019 Bolsonaro perdeu seu monopólio sobre o debate público apenas três vezes: quando estudantes e professores saíram às ruas contra os cortes na educação, em maio; quando foram divulgadas pelo The Intercept Brasil as mensagens do escândalo conhecido como “Vaza Jato”; e quando as investigações do assassinato de Anderson e Marielle chegaram à portaria do condomínio Vivendas da Barra, onde Bolsonaro e seus filhos viviam, assim como um dos suspeitos de envolvimento no crime.

Com exceção desses três episódios, o Brasil esteve refém da tática de Bolsonaro ao longo de todo o ano de 2019. Atônitos, muitos defendiam que a oposição simplesmente ignorasse as polêmicas criadas pelo presidente, aderindo a uma espécie de “abstenção voluntária” em relação aos temas que mobilizavam milhões de pessoas nas redes sociais. A proposta, ainda que absurda, volta e meia reaparece na forma de um apelo do tipo “vamos deixar ele falando sozinho”.

Mas a pandemia do novo coronavírus alterou drasticamente esse quadro. Em poucas semanas, Bolsonaro perdeu completamente o controle sobre o que se debate no Brasil. Suas tentativas de arrastar a agenda nacional para polêmicas em torno da abertura do comércio, de querelas com prefeitos e governadores e até da eficácia da hidroxicloroquina pareceram verdadeiras demonstrações de desespero.

Em poucos dias o que ocupou o centro das atenções foi a pandemia e as medidas para combatê-la. Os negacionistas se isolaram e Bolsonaro viu antigos aliados, como o governador de Goiás, baterem de frente com o governo federal. O conflito com o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, evidenciou a dificuldade de Bolsonaro em controlar até integrantes de seu governo. As pesquisas de opinião foram taxativas: a disputa de versões em torno da pandemia deu a vitória à OMS e aos veículos de comunicação. A ciência vencia, pelo menos em termos quantitativos, o negacionismo bolsonarista.

Esse movimento alterou também o ambiente eleitoral. Se antes da pandemia poderíamos prever uma eleição nacionalizada e pautada pela disjuntiva contra/a favor de Bolsonaro, agora o que se vê é uma preocupação imensa com temas como saúde e emprego. A eficiência dos serviços públicos e o financiamento das políticas sociais – para desespero de Paulo Guedes e outros privatistas – estão no centro das preocupações de milhões de pessoas.

Diante deste novo cenário, tanto a oposição de esquerda quanto a velha direita ganham fôlego. Isso não significa, no entanto, que o bolsonarismo é uma força eleitoral em decadência. Pelo contrário. Os efeitos positivos do Auxílio Emergencial aprovado pela oposição no Congresso Nacional melhoraram a imagem do presidente e estimularam muitos candidatos a se aproximarem da extrema-direita. Diferentemente do que se previa, porém, a eleição não será pautada apenas pelo presidente e suas polêmicas.

Ao perder o controle sobre o debate público, Bolsonaro precisa dividir os holofotes com outros personagens – de infectologistas a prefeitos e governadores – e sair de sua zona de conforto. Isso não é suficiente para que as forças de oposição voltem a falar com milhões de pessoas. Mas é uma condição indispensável para que o processo eleitoral possa ser uma esperança de dias melhores.