Diante das semelhanças entre Trump e Bolsonaro, muitos passaram a defender a necessidade de uma frente “supra-ideológica” contra o presidente brasileiro, unindo a centro-direita e a esquerda, como se essa tivesse sido a fórmula vitoriosa nos Estados Unidos. É uma comparação equivocada.

No último dia três de novembro as atenções do mundo todo se voltaram para os Estados Unidos. O país realizava sua 49ª eleição presidencial num clima de polarização política inédito em muitos anos. A gestão de Donald Trump, marcada por denúncias, ataques às minorias, isolacionismo, crises internacionais, acirrou as divergências internas.

A pandemia do novo coronavírus e a campanha de desinformação liderada por Trump agravou a situação. O governo dos Estados Unidos rompeu com a Organização Mundial da Saúde, alimentou teorias da conspiração contra a China e flertou abertamente com o negacionismo. Diante da gravidade da situação, a expectativa de uma reeleição de Trump alarmava todos os defensores da democracia, da ciência, da diversidade e da paz.

Escrutinados os votos, o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, foi declarado vencedor com 50,8% dos assentos no colégio eleitoral, contra 47,4% do candidato republicano. O resultado foi comemorado por muitos fora dos EUA, mas a sensação principal foi de alívio. Afinal, a maior potência econômica e militar do planeta não teria como presidente, por mais quatro anos, um representante da alt right na Casa Branca.

Não demorou para que comparações com a situação brasileira começassem a aparecer. Não é para menos. O Brasil também é governado por um líder de extrema-direita autoritário que detesta as minorias, abomina os direitos sociais, nega a ciência e governa para uma minoria de fanáticos. Além disso, Bolsonaro e sua família ainda estão envolvidos em esquemas de corrupção que podem, inclusive, comprovar sua ligação com grupos criminosos do Rio de Janeiro.

Mas a eleição nos Estados Unidos, embora conte com outras candidaturas de menor expressão, é uma espécie de “segundo turno antecipado”. Isso se deve à natureza do sistema partidário estadunidense, pensado para impedir o surgimento de forças partidárias vinculadas às lutas operárias no início do século XX. No Brasil, ao contrário, temos um sistema partidário ultra-pulverizado que, bem ou mal, expressa a diversidade de posições políticas de nossa sociedade.

Além disso, também é incorreto afirmar que a unidade entre progressistas, moderados e conservadores dentro do Partido Democrata foi uma opção. Pelo contrário. A esquerda, sem condições de competir com a “máquina eleitoral” de Biden nas primárias, foi praticamente forçada a desistir da candidatura de Bernie Sanders. Longe de um entendimento em torno de uma tática comum, a vitória de Biden representa a imposição do establishment democrata contra a esquerda.

Outro equívoco na comparação entre Brasil e Estados Unidos está na apreciação das diferentes frações que disputam protagonismo aqui e lá. Enquanto nos EUA a disputa se concentrou em dois grandes polos, representados por uma direita moderada (Biden) e uma extrema-direita em ascensão (Trump), no Brasil há pelo menos quatro campos políticos: um de esquerda, um de centro-esquerda, um de centro-direita e um de extrema-direita.

Enquanto a esquerda e a centro-esquerda trabalham em conjunto para deter a agenda de Bolsonaro que prevê retirada de direitos, desmonte da legislação ambiental, ataques à democracia e às minorias, entre outros; a centro-direita, na maior parte dos casos, tem apoiado essa agenda no Congresso Nacional. Segundo dados da própria Câmara dos Deputados, partidos como DEM e PSDB votam com o governo em mais de 80% das matérias. A recente adesão de vários partidos do chamado “Centrão” ao governo Bolsonaro é a expressão cabal de que a direita brasileira não tem qualquer compromisso verdadeiramente democrático.

É óbvio, toda regra tem suas exceções. Há indivíduos ligados à centro-direita que expressam um repúdio genuíno ao governo da extrema-direita. Mas seus partidos, em geral, são os mesmos que impedem o prosseguimento de um pedido de impeachment na Câmara dos Deputados contra Bolsonaro, uma arma que até o Partido Democrata nos EUA teve a coragem de usar contra Trump.

Portanto, não tenhamos ilusões: não haverá “frente ampla” contra Bolsonaro em 2022. No máximo, contaremos com duas alternativas ao presidente genocida. De um lado, a velha direita, que sustentou boa parte da agenda bolsonarista no Congresso Nacional e barrou o impeachment do presidente. De outro, a esquerda e a centro-esquerda, criminalizada nos últimos anos pela perseguição judicial e pela demonização midiática, mas revigorada por importantes vitórias nas eleições municipais deste ano e pelos ventos da mudança que sopram na América Latina. Se reunirmos as condições para uma unidade entre os que lutam contra Bolsonaro, já teremos dado um passo decisivo.