Em meio à pandemia do novo coronavírus, o presidente da Câmara dos Deputados resolveu colocar em andamento a agenda que garantiu sua eleição. Em vez da volta do Auxílio Emergencial de R$ 600, os deputados e deputadas aprovaram recentemente a autonomia do Banco Central; no lugar de manter a flexibilização das regras fiscais para ajudar Estados e Municípios a combaterem a crise, a Câmara quer votar o PL que permite a mineração em áreas indígenas; em vez de abrir o processo de impeachment contra Jair Bolsonaro, Arthur Lira se empenhou em aprovar a “urgentíssima” reforma do regimento da Câmara dos Deputados para enfraquecer a oposição.
Em resumo: no meio de uma pandemia que já tirou a vida de mais de meio milhão de brasileiros e brasileiras, os projetos pautados pelo presidente da Câmara dos Deputados e seu grupo político não têm nenhuma relação com os problemas reais do povo brasileiro. Prova disso é a disposição de colocar em votação uma nova reforma eleitoral. Para isso, Lira instalou duas comissões especiais, uma para discutir um novo Código Eleitoral e outra para propor um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) para alterar o sistema político.
Como se pode imaginar, as propostas que têm ganhado força em nada melhoram a situação atual. Pelo contrário: têm como objetivo tão somente responder às angústias dos deputados do chamado “Centrão” diante das incertezas sobre as eleições do ano que vem. Para tanto, Lira e seus aliados querem pautar diversas mudanças. Dentre elas, o fim da divisão igualitária das chamadas “sobras” e da cota mínima de 30% de mulheres nas chapas para os cargos proporcionais. Além disso, o Centrão trabalha para aprovar o famigerado “Distritão” que, na prática, acaba com o voto proporcional no Brasil.
Nos últimos anos duas reformas eleitorais foram promovidas. A primeira, quando Eduardo Cunha ainda era presidente da Câmara dos Deputados, teve como objetivo responder à decisão do Supremo Tribunal Federal, que entendeu ser inconstitucional o financiamento empresarial de campanhas. Com isso, Cunha e seus aliados – muitos dos quais estão agora ao lado de Lira – promoveram várias mudanças para tentar baratear o custo das campanhas para os candidatos.
Em seguida, já com Rodrigo Maia na presidência, a Câmara aprovou uma nova reforma eleitoral. Essa, por sua vez, trouxe pontos positivos – como o fim das coligações proporcionais, a divisão igualitária das sobras e a constituição de um fundo público para o financiamento eleitoral – e negativos – como a cláusula de barreira tal como pensada pelos grandes partidos para liquidar os partidos em ascensão.
Não é nosso propósito aqui analisar todas as mudanças que seriam desejáveis para fortalecer nosso sistema político. Cabe destacar, tão somente, que a obsessão em liquidar os partidos não é solução. Eventuais alterações na Lei Eleitoral deveriam buscar fortalecer as legendas ideológicas, afastar a influência do poder econômico do processo de escolha de nossos governantes, coibir a desinformação e as fake news, combater a subrepresentação de mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTs, dentre outras medidas.
Ao contrário disso, a proposta em debate na Câmara dos Deputados tem um propósito claro: enfraquecer os partidos e fortalecer os projetos individuais. Por isso, no coração da reforma está o chamado “Distritão”. Nessa proposta, os Estados seriam transformados em distritos eleitorais e os deputados mais votados seriam eleitos diretamente. Vejamos o exemplo de São Paulo. As 70 cadeiras a que o estado tem direito na Câmara dos Deputados seriam distribuídas entre os 70 candidatos mais votados. Na prática, não existiria mais o voto proporcional, onde as vagas são divididas entre os partidos a partir da quantidade de votos alcançados em cada lista de candidatos.
Parece mais simples, não é? Acontece que esse modelo favorece os “figurões” que não precisam de partidos para se eleger. Isso significa mais líderes religiosos, atores de TV, apresentadores de rádio… e menos líderes sociais, ativistas de causas importantes para a democracia, representantes de regiões ou categorias. No lugar de destinar seu voto a um projeto, o eleitor deverá escolher entre pessoas. E isso é a morte da política. Por isso o “Centrão” – formado majoritariamente por deputados fisiológicos e sem qualquer compromisso ideológico – quer fazer a proposta avançar a todo custo.
Outras mudanças negativas e mais complexas também estão em discussão. Mencionei o fim da cota mínima de 30% de mulheres nas chapas ao legislativo (vereador, deputados estaduais e deputados federais), o que representaria um enorme retrocesso na luta para ampliar a presença feminina na política institucional.
Outra mudança negativa busca fazer com que apenas os partidos que alcançaram o quociente eleitoral (o cálculo que divide o número de vagas pelos votos válidos) possam participar da distribuição das chamadas “sobras”. O tema é árido. Tentando simplificar: essa mudança faria com que um partido que alcançasse 0,99% do quociente não pudesse conquistar uma cadeira. Esses votos seriam distribuídos entre os partidos que alcançaram o quociente. Com isso, os votos destinados, por exemplo, ao PSOL, poderiam servir a partidos como o PSL.
Por tudo isso, a proposta de reforma eleitoral (chamá-la de reforma “política” seria um elogio) em debate na Câmara dos Deputados é ruim principalmente em dois sentidos. Primeiro, porque é inoportuna, num momento em que o parlamento brasileiro deveria estar totalmente focado em aprovar medidas para conter a pandemia e proteger o povo brasileiro. Segundo, porque não traz nenhuma mudança positiva a um sistema político com vários problemas. Nesse caso, o melhor seria aguardar para abrir essa discussão de forma ampla com a sociedade brasileira quando todos estiverem em condições de participar. Sem isso, qualquer mudança servirá apenas às oligarquias de sempre.