Após uma acirrada disputa entre duas candidaturas de setores totalmente opostos, o Chile decide, no próximo domingo, quem será seu presidente: o jovem representante da nova esquerda Gabriel Boric ou o extremista de direita José Antonio Kast. O cenário de disputa mega polarizada foi resultado dos protestos populares que sacudiram o país na última década, expondo o esgotamento das políticas neoliberais adotadas pelos governos de centro-esquerda e centro-direita desde o fim dos anos 1980. Este será o grande momento para definir se o Chile avançará em sua agenda progressista ou retrocederá às trevas  da era Picnochet.

O fim da sangrenta ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989) permitiu que os chilenos pudessem novamente eleger seus representantes e os partidos voltassem a funcionar. A vitória do No no plebiscito que decidiu pelo fim do regime autoritário, em 1989, restabeleceu a democracia. Diferentemente do Brasil, os crimes da ditadura não ficaram totalmente impunes e houve justiça de transição, punindo agentes da ditadura.

Apesar dos governos democráticos terem se esforçado para criar uma consciência nacional em torno dos horrores da ditadura, a base econômica e social do regime pinochetista foi preservada. A constituição chilena é produto dos primeiros experimentos neoliberais desenvolvidos no regime militar pelos chamados “Chicago boys” – economistas estadunidenses que usaram o país como cobaia para suas teorias econômicas. O resultado não poderia ser mais trágico.

No Chile não há universidades gratuitas, o que faz com que os estudantes tenham que se endividar junto aos bancos para poder custear seus estudos. O sistema de aposentadorias é todo baseado em fundos privados, com pensões baixíssimas que jogam milhões de idosos à própria sorte todos os anos.

Esse modelo nunca foi questionado pela coalizão de centro-esquerda, formada pelo Partido Socialista e pela Democracia-Cristã. Por duas décadas a chamada “Concertación” governou dentro das regras herdadas do regime militar. A constituição de Pinochet era uma realidade, era o “sistema” e ponto. Mas veio a crise econômica global de 2008 e, em 2011, as rebeliões estudantis.

Como aconteceu em todos os países, a crise prejudicou especialmente os mais pobres. No Chile, os estudantes – que desde o início dos anos 2000 questionavam o modelo – foram a vanguarda da resistência. Sua luta impactou o sistema político, que teve que abrir espaço a novos partidos. Uma reforma eleitoral em 2014 colocou fim ao bipartidarismo que marcou a política chilena desde a transição.

Entre os novos partidos surgiram várias legendas formadas por lideranças estudantis oriundas dos protestos de 2011. Esses partidos questionavam o pacto da transição e a constituição de Pinochet em vigor. Questionavam também a centro-esquerda e sua aceitação do neoliberalismo. Queriam mais democracia e mais direitos. Assim, a política chilena, antes dominada por uma polarização entre centro-esquerda e centro-direita, viu surgir novos atores. Uma nova esquerda, jovem, combativa e profundamente crítica ao neoliberalismo e ao modelo de governabilidade existente até então.

Em 2019 começou uma nova onda de protestos, uma verdadeira rebelião popular contra todas as formas de desigualdade. A luta estudantil encontrou a luta indígena; o feminismo juntou-se aos sindicatos; os aposentados saíram às ruas ao lado dos mineiros. Uma energia de mudança tomou o país. Milhares de pessoas exigiam o fim das políticas neoliberais.

Após meses de protestos brutalmente reprimidos pelo governo direitista de Sebastián Piñera, foi convocado um plebiscito para que o povo decidisse se queria uma nova constituição. Era a oportunidade de uma transição de verdade. Num processo de mobilização constante, a imensa maioria se manifestou favorável à convocação de uma assembleia constituinte formada por novos deputados e deputadas. Ela foi formada majoritariamente por movimentos e partidos progressistas e a nova esquerda passou a ter papel decisivo nas lutas pela nova constituição.

A eleição presidencial que se encerra no próximo domingo está profundamente marcada por esse processo. Ela é resultado direto da convulsão social dos últimos anos. Do lado da nova esquerda está Gabriel Boric, líder estudantil em 2011, deputado pela região de Magallanes e um dos articuladores do movimento Frente Amplio, coalizão de partidos e movimentos que alcançou 20% nas últimas eleições presidenciais com a candidatura da jornalista Beatriz Sánchez.

Seu principal adversário é José Antonio Kast, um ex-deputado de extrema direita e fã assumido de Pinochet. Ele usa a crise do modelo para reivindicar uma “mudança” e defender a ditadura. Afirma que a crise que o país vive não tem a ver com o modelo econômico herdado da ditadura, mas com as mudanças introduzidas pela democracia liberal. Em meio às incertezas de uma classe média conservadora, Kast foi ganhando cada vez mais adeptos.

A vitória de Boric pode colocar no poder uma geração de lutadores que nasceu do enfrentamento contra o neoliberalismo e as vacilações da “velha esquerda”. Uma vitória de Kast pode fortalecer uma saída reacionária para a crise, premiando a América Latina com um novo Bolsonaro. Por isso, não há espaço para titubear: o candidato das esquerdas no Chile é Gabriel Boric.