Segunda-feira, 4 de julho. A Convenção Constitucional do Chile entregou a proposta de nova Constituição ao Presidente Gabriel Boric, para a sua ratificação. A primeira constituição paritária, com metade de mulheres constituintes, e com representação dos povos indígenas.

A proposta será submetida a um referendo popular no início de setembro, com registro eleitoral automático e voto obrigatório pela primeira vez, o que deve gerar uma participação massiva para votar “aprovo” ou “rechaço” em relação à nova constituição.

A campanha começou oficialmente dia 6 de julho, mas as elites chilenas já começaram a campanha pelo rechaço desde que não obtiveram um terço da constituinte para poder vetar as futuras normas, como ocorreu com a Constituição da ditadura, que segue vigente.

É a mesma postura adotada assim que o presidente Gabriel Boric foi eleito com a maior votação da história, no final do ano. De lá até a posse, em 11 de março, as crises do governo do ex-presidente Sebastián Piñera se agudizaram e tomaram o noticiário.

A nova esquerda chilena assumiu a presidência com um gabinete composto por maioria de ministras, aumento do salário mínimo, avanços em matéria ambiental e políticas sociais. Porém sofre com as crises herdadas e os anseios da população por mudanças.

A Constituição da ditadura

O golpe militar de 1973 suspendeu a Constituição de 1925, deixando o Chile sem uma constituição durante sete anos. Em 1980, o ditador Augusto Pinochet convocou um referendo para se legitimar no poder e impor uma constituição. A nova Carta privatizou a água, o cobre, a educação, as florestas, a previdência e a saúde, com regras tributária e trabalhista que penalizavam os mais pobres, transformando Chile no laboratório do neoliberalismo. A taxa de desemprego superou os 20% e a pobreza disparou. A banca chilena quebrou, tendo que ser resgatada pelo Fundo Monetário Internacional.

Em 1988, ocorreu um referendo para decidir “Sim” ou “Não” a Pinochet por mais oito anos. A oposição pode fazer campanha e o eleitorado, agora registrado previamente, votou “Não” a Pinochet, iniciando uma transição com uma Constituição que exige dois terços do Congresso para ser reformada.

Durante as últimas décadas, coalizões de centro-esquerda chegaram ao poder, mas os setores conservadores mantiveram os pilares do neoliberalismo com seu poder de veto de um terço. Ao mesmo tempo, uma geração que cresceu sob a democracia passou a protagonizar sucessivas mobilizações de massas em contra do sistema neoliberal.

Em 2006, a “Revolução dos Pinguins” (alusão ao uniforme secundarista) tomou as ruas exigindo melhorias na educação. Em 2011, essa mesma geração irrompeu com protestos estudantis pela redução das desigualdades sociais. Em 2018, a “Maré Feminista” varreu o país, lutando pela igualdade de gênero e combate à violência contra as mulheres.

Essa sequência de mobilizações sociais culminou em outubro de 2019 naquilo que ficou conhecido como “Estampido Social”, quando o povo chileno tomou as ruas por meses, gerando a maior crise política desde o fim da ditadura. O resultado desse processo foi a convocação de um processo constituinte para pôr fim à Constituição de Pinochet.

A nova constituição

A nova constituição responde aos anseios por uma sociedade mais justa, derrubando pilares do neoliberalismo, ao mesmo tempo em que avança no reconhecimento da igualdade de gênero, diversidade e direitos fundamentais.

Os princípios da paridade e plurinacionalidade são transversais, garantindo a igualdade entre mulheres e homens e a representação dos povos indígenas em todas as instâncias públicas, de conselhos ao parlamento.

A nova Constituição também cria o sistema nacional de cuidados, que garante que os cuidados necessários a crianças, idosos, pessoas com deficiência ou alguma doença, serão remunerados ou fornecidos pelo Estado. Uma revolução para pessoas cuidadoras, a maioria mulheres.

Os recursos naturais, como a água, retomam seu carácter público. Se define um estado de bem-estar social solidário, com sistema público de saúde, educação gratuita e previdência social pública, restituindo direitos fundamentais retirados pela ditadura.

Povos indígenas terão seus direitos e autonomia garantidos, inclusive ao idioma, território e sistemas de justiça próprios, regidos pelos princípios gerais e um tribunal constitucional paritário e representativo, entre muitos outros avanços.

Ainda assim, a campanha da direita pelo rechaço avança, com o uso de notícias falsas, terrorismo midiático e difundindo medo na sociedade, os setores conservadores acusam a nova constituição de querer mudar a bandeira e o hino do Chile, revogar a propriedade privada e dividir o país. Uma agenda conhecida da direita.

No momento, os institutos de pesquisa apontam uma leve vantagem do rechaço. Os meios de comunicação repercutem os discursos da oposição, com promessas de “rechaçar para reformar” a Constituição da ditadura, algo que vetaram sempre.

A nova esquerda chilena

Protagonista dos movimentos sociais de 2006 até hoje, a nova esquerda chilena viu suas lideranças estudantis e feministas chegarem ao poder, após a conquista histórica do processo constituinte. Algo que a centro-esquerda, tentou por décadas, sem êxito.

O novo Chile está dividido de maneira parecida à composição da Convenção Constituinte, com quase um terço de apoio à direita, um pouco mais de um terço à esquerda e o restante dividido entre setores independentistas e não alinhados aos partidos políticos.

O que explica uma vitória eleitoral parcial, em que o presidente tem minoria no Congresso e um processo constituinte por concluir. Ao mesmo tempo que deve administrar as crises herdadas do governo do ex-presidente Sebastián Piñera.

As principais delas são a crise econômica, resultado da pandemia, com altas taxas de desemprego e informalidade; a crise de insegurança pública, com ênfase no conflito do Estado com o povo Mapuche; e a crise migratória, com o ingresso irregular de milhares de pessoas refugiadas todos os dias.

As medidas implementadas até agora reduziram um pouco o desemprego, aumentaram progressivamente o salário-mínimo – com o maior reajuste em 29 anos, congelaram as tarifas de transporte público e amortizam o aumento do petróleo, do qual o Chile é dependente do mercado internacional. Hoje, a prioridade do governo é aprovar a nova constituição e a reforma tributária que financie os novos direitos e serviços previstos nela.

A reforma aumentaria impostos aos 3% mais ricos da população, aumentando o PIB em 4,2%, nos próximos quatro anos.

As promessas de um governo ambientalista têm se cumprido com a ratificação do Acordo de Escazú e o fechamento da termoelétrica à carvão que mais polui no país, apesar dos protestos. Ao mesmo tempo, o governo anuncia planos de expandir enormemente a malha ferroviária e diminuir a dependência de combustíveis fósseis.

Nas relações internacionais, o governo vem cumprindo com as promessas de campanha de respeito aos direitos humanos e integração latino-americana. Posicionando-se firmemente contra a invasão russa da Ucrânia e criticando as violações de direitos humanos. A distância de Boric em relação às experiências de Cuba, Venezuela e Nicarágua é conhecida.

Mas mesmo o governo tem buscado reconhecer que a situação de Cuba, por exemplo, é muito diferente da Nicarágua. Além disso, foi correta a sua postura contrária à exclusão desses países da Cúpula das Américas, pelo anfitrião, Estados Unidos.

Porém, o governo ainda não conseguiu superar o conflito do Estado contra o povo Mapuche que viveu uma escalada de violência nos últimos anos, herdando um Estado de exceção constitucional, com a presença das forças armadas para patrulhar a Macrozona Sul do país.

Na tentativa de reinstalar o diálogo, o governo retirou as forças armadas das comunidades. Porém, manteve o estado de exceção nas rodovias, criticado pela direita, que reivindica mais repressão, e por deputadas Mapuche governistas.

O fato é que os atos de violência da zona são provocados majoritariamente pelas empresas madeireiras e respondidos, em menor medida, por grupos Mapuche radicalizados. Um modus operandi muito utilizado pela ditadura e ainda praticado pelas elites e forças policiais. O conflito, portanto, já não é estimulado pelo Estado, o que já é um avanço, mas as medidas tomadas até aqui são notoriamente insuficientes para deter a escalada de violência.

As elites econômicas realizam uma campanha de medo contra e as medidas adotadas pelo governo, relacionando-as ao processo constituinte, projetando um cenário de caos nos meios de comunicação, alegando inexperiência da nova esquerda no poder. Apostando nas boas relações diplomáticas, centradas na América Latina, Boric tem manifestado irrestrito apoio à resistência democrática no Brasil e Colômbia.

Paradoxalmente, parte da esquerda tradicional do continente critica o Governo Boric por um suposto alinhamento aos Estados Unidos, devido às críticas aos governos nicaraguense e venezuelano. Assim como seu apoio à Ucrânia, contra a invasão russa. É um ponto de fácil distinção da nova esquerda em relação à esquerda oriunda dos anos de chumbo. A diferença de fundo, porém, é a centralidade dos direitos humanos.
É possível identificar lacunas importantes no projeto da nova esquerda chilena. Afinal, é um projeto em construção. Mas questionar seu compromisso com a ampliação radical dos direitos sociais, com a integração soberana da América Latina ou com os direitos dos povos tradicionais é pouco honesto.

Como resultado de um levante popular, a vitória de Boric está vinculada diretamente à falência do regime político. E construir um novo sistema sem uma ruptura revolucionária é bem mais difícil. Dentro de limites evidente, é o que a nova esquerda chilena está tentando fazer. Um pouco de compreensão e boa vontade das esquerda brasileira não fariam mal.

*Historiador, Cientista Político e Presidente Nacional do Partido Socialismo e Liberdade.
*Defensor de direitos humanos, brasileiro radicado no Chile. É militante da Revolución Democrática (Frente Amplio) e do Partido dos Trabalhadores.

Por Juliano Medeiros e Raoní Beltrão do Vale