Conceito não se encerra em sentenças de tribunal ou páginas do dicionário
As imagens das crianças indígenas yanomamis chocaram o mundo. Como seria possível que, em plena terceira década do século 21, com todos os recursos tecnológicos e humanos disponíveis, uma crise humanitária dessas proporções pudesse acontecer, ainda mais num país plenamente integrado ao sistema internacional como o Brasil? Como definir tamanha degradação?
Dias atrás o sociólogo Demétrio Magnoli, colunista desta Folha, questionou o uso do termo “genocídio” para classificar a ação do Estado brasileiro em relação aos yanomamis, alimentando uma intensa polêmica nas redes sociais. Ele já havia afirmado, em 2020, que a CPI da Covid no Senado “teria se desmoralizado” caso colocasse o genocídio dos povos indígenas em seu relatório final.
Segundo o sociólogo, o crime de genocídio só pode ser caracterizado quando há ação deliberada do Estado para o extermínio de uma população. Por isso, além do Holocausto, só teriam existido outros três episódios de genocídio no século passado: Armênia (1915-1917), Camboja (1975-1979) e Ruanda (1994). Qual o critério utilizado por Magnoli para definir o que é e o que não é genocídio? As decisões do Tribunal Penal Internacional.
Parece uma apreciação bastante formal para um cientista social diante de um conceito que, como qualquer outro que se refere a fenômenos da vida social, está em permanente transformação. Democracia, justiça, igualdade, genocídio são conceitos “em disputa”, cujo significado não se encerra nas sentenças de um tribunal ou nas páginas de um dicionário. Ainda assim —para que não reste espaço a qualquer relativismo— vale lembrar que, mesmo no dicionário Oxford, o conceito de genocídio é amplo, abarcando desde “o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade ou grupo étnico” até “a submissão de grupos humanos a condições insuportáveis de vida”.
De qualquer forma, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou Jair Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional pelo tratamento dispensado aos povos indígenas durante a pandemia. Também tramita uma ação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a situação do povo yanomami. Não demorará muito, portanto, para que os tribunais internacionais também se posicionem em relação às acusações de genocídio contra o ex-presidente.
A questão de fundo, no entanto, é mais complexa. Magnoli representa a voz dos omissos que não suportam conviver com a ideia de que, à luz do dia, se produzia um genocídio no Brasil enquanto nossas instituições dormiam em berço esplêndido. Olhar para as crianças yanomamis, assoladas pela fome e pelo abandono, e admitir que algo poderia ter sido feito, significa assumir parte da culpa. E isso é duro demais para parcela de nossas elites.
Todos sabemos que Bolsonaro poderia ter sido detido, fosse pela Câmara dos Deputados, comprada pelo orçamento secreto, fosse pelas instituições do Judiciário, que transitaram entre a omissão dos tribunais superiores e a cumplicidade do procurador-geral da República. O ex-presidente ter concluído seu mandato depois de todos os crimes que cometeu é um verdadeiro escárnio. Ainda mais quando lembramos que poucos anos antes uma mandatária foi destituída por razões eminentemente políticas.
A volta da polêmica em torno do uso do termo genocídio nada tem a ver com a disputa em torno de seus sentidos, ademais, legítima. Ela esconde na verdade a incapacidade de admitir a banalidade com que parte de nossas elites tratou o projeto de aniquilação liderado por Bolsonaro. Afinal, enquanto a morte não bater à sua porta, ela está longe demais para gerar qualquer empatia verdadeira.